Para corrigir um erro histórico ocorrido há centenas de anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) pratica uma injustiça contra inúmeros proprietários de imóveis rurais e urbanos do nosso país, ao decidir ser inconstitucional, no dia 27 de setembro de 2023, a tese do marco temporal na demarcação de terras indígenas.
Ao fazê-lo, o tribunal perdeu uma valiosa oportunidade de estabelecer segurança jurídica sobre o tema, optando por um critério que, embora vise proteger os direitos indígenas, pode ter implicações negativas para a sociedade como um todo.
1. O Marco Temporal: entendendo o conceito e sua origem
A tese do marco temporal propõe que os indígenas só teriam direito à demarcação das terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição Federal em 5 de outubro de 1988. Em contraste, a visão proposta defende que o direito dos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas precede a fundação do Estado brasileiro.
Essa tese foi utilizada pela primeira vez em 2009, quando o próprio STF se valeu dela em um julgamento que determinou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. No entanto, a decisão não tinha caráter vinculante para os demais casos, o que permitiu que o tema fosse questionado novamente na Justiça.
2. O Caso no STF
O caso que reacendeu a discussão do marco temporal no STF é uma reintegração de posse promovida pelo Estado de Santa Catarina, que discute a posse da Terra Indígena Ibirama, habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. A posse de parte da terra foi questionada pela Procuradoria do Estado de SC, cujo julgamento no TRF-4 adotou a tese do marco temporal indígena.
Após essa decisão favorável ao Estado de SC, a Funai enviou ao STF um recurso questionando a decisão do TRF-4 e a constitucionalidade da tese do Marco Temporal. O julgamento deste recurso se iniciou em 2021 e, ao mesmo, foi atribuído caráter de repercussão geral, que na prática quer dizer que a decisão deste recurso valerá para todos os casos na justiça envolvendo demarcação de terras indígenas.
O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 no STF foi um dos mais extensos e intrincados da história da corte. Na sessão do dia 21 de setembro de 2023, por 9 a 2, o tribunal decidiu rejeitar a tese do marco temporal, reconhecendo-a como incompatível com os direitos originários dos povos indígenas. Os ministros Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Mendes posicionaram-se contra a limitação temporal para a demarcação de territórios indígenas. Em contrapartida, os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor da adoção do marco temporal.
3. Indenizações aos proprietários de boa-fé
Após definirem por afastar a tese do marco temporal, os ministros passaram a analisar alguns desdobramentos do caso, como a questão sobre a indenização aos particulares.
Durante o julgamento, surgiram dois posicionamentos: um primeiro apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes, que defendia uma prévia indenização ao proprietário de boa-fé, com base na legalidade dos títulos de propriedade emitidos pela União ou Estados; e um segundo apresentado pelo ministro Zanin, que defendia que a indenização não deveria ser com base na legalidade do título de propriedade, mas sim com base na lesão causada pela União ou pelos Estados que emitiram títulos de propriedades em áreas consideradas indígenas em favor de particulares.
Em relação às indenizações, ficou definido na quarta-feira (27/09/2023) que:
- Se, na época em que a Constituição foi promulgada, havia no imóvel rural objeto de demarcação indígena, ocupação indígena ou conflito pela posse, o terceiro adquirente de boa-fé terá direito apenas a indenização de benfeitorias úteis e necessárias realizadas no imóvel.
- Se, na época em que a Constituição foi promulgada, não havia ocupação tradicional indígena ou se havia alguma disputa sobre o imóvel objeto da demarcação indígena, então os acordos e transações legais feitas antes são considerados válidos.
- Se o proprietário tinha posse de boa-fé ou um título justo sobre terras agora consideradas tradicionalmente indígenas, ele tem direito a uma compensação justa e prévia pelas benfeitorias necessárias e úteis feitas na terra, que serão pagas pela União.
- E se não for possível realocar as pessoas que estavam lá, elas serão compensadas pelo valor da terra nua, seja em dinheiro ou em títulos de dívida agrária.
5. Implicações futuras
A posição do STF rejeitando a tese do marco temporal traz uma insegurança jurídica ao povo brasileiro, pois ao modificar o seu entendimento, deixando de aplicar um critério objetivo aos casos de demarcação de terras indígenas, desconsidera os direitos adquiridos de terceiros de boa-fé que, ao longo das décadas, estabeleceram-se em terras e nelas edificaram suas vidas, e agora serão obrigados a deixarem seus imóveis.
6. Queda de braço entre STF e Congresso Nacional
Em meio ao julgamento no STF, foi aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado um projeto de lei que estabelece o marco temporal como critério para demarcação de terras indígenas. O fato é que, sendo aprovado esse Projeto de Lei, diante do posicionamento do STF, ele tem uma grande chance de ser considerado inconstitucional caso alguma entidade leve a discussão para o STF.
Diante desta fragilidade, o melhor caminho é alterar a Constituição Federal, deixando mais claro o texto sobre a aplicação do marco temporal para fins de demarcação de terras indígenas, pois isso colocaria uma pá de cal na discussão.
Ciente disso, a bancada ruralista protocolou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata das regras para demarcação de terras indígenas com base na data da promulgação da Constituição Federal, e busca também acelerar a análise desta PEC 48/2023 e, também, da PEC 132/2015, que disciplina o pagamento de indenização a agricultores que estão em áreas declaradas como indígenas.
Conclusão
A decisão do STF, embora busque corrigir injustiças históricas, passou longe de pacificar a questão. A rejeição do marco temporal, ao invés de trazer clareza e segurança jurídica, trouxe mais incertezas que culminarão em conflitos.
Cabe agora ao Congresso Nacional cumprir o seu papel, aprovando as PECs que tratam sobre o tema, restabelecendo a ordem e segurança jurídica que o caso requer.
Leandro Amaral é advogado com atuação especializada no Agronegócio desde 2004; Master of Laws em Direito Empresarial pela FGV, MBA em Direito do Agronegócio pelo Ibmec; Especialista em Recuperação de Empresas e Gestão Patrimonial pelo Insper; Especialista em Contratos do Agronegócio pelo IBDA; membro da U.B.A.U. – União Brasileira dos Agraristas Universitários e da Academia Brasileira de Crédito do Agro.
Fonte: Assessoria de Comunicação Marcela Freitas.