Falar sobre “mercado de carbono” no contexto da agricultura é algo recente, mas que veio para ficar e já vem mudando, aos poucos, a forma como o setor opera.
ARTIGO
POR: Filipe Dutra Nunes
Carbono vem de carona numa discussão mais ampla, sobre sustentabilidade. Sustentabilidade (com o risco de falar o óbvio) é suprir as necessidades humanas atuais garantindo que gerações futuras possam fazer o mesmo. É harmonizar desenvolvimento econômico e conservação ambiental.
Dentro da agenda de sustentabilidade, uma das principais discussões é como podemos diminuir a emissão de gases de efeito estufa (GEE), protagonistas no aquecimento global. Essas discussões seguem há décadas, mas um marco foi a COP21, em Paris, onde países se comprometeram com reduções de emissões que levem a um aumento de temperatura global de no máximo 1.5°C em 2030 e net-zero até 2050. Empresas seguiram a tendência (e a pressão) de também divulgarem seus compromissos sustentáveis, cada vez mais comuns, ainda que variem muito em escopo, cronograma e granularidade.
E a agricultura nessa história?
Falando novamente do óbvio (aviso: isso vai acontecer algumas vezes nesse artigo), agricultura é uma das formas mais antigas e essenciais de como interagimos com a natureza e moldamos o planeta. Sua criação foi um ponto de inflexão no crescimento da população da nossa espécie, saindo de ~0,5M em 50.000 BC para os quase 8B em 2024.
Agricultura é como alimentamos e vestimos essa turma toda. Para dar uma noção de grandeza:
- •Quase metade (46%) da superfície terrestre habitável do planeta é usada para agricultura (incluindo criação de animais)
- •930M de pessoas trabalham em agricultura
- •94% da biomassa não-humana de mamíferos é de gado (~15x maior que animais silvestres)
Pela grandeza e contato direto com a natureza, é natural de se esperar que o setor tenha um impacto ambiental relevante
- •70% da água doce usada é usada para agricultura
- •20% – 25% de emissões de GEE vem da produção de alimentos. Agricultura é o quarto maior setor em emissões depois de eletricidade e aquecimento, transporte e indústria & construção.
Mas a agricultura tem um trunfo, algo que diferencia o setor e é uma alavanca poderosa na agenda de sustentabilidade. O setor pode ser um “capturador/removedor de carbono”. Fotossíntese é uma tecnologia natural para se capturar CO2 do ar. Dependendo de como o processo produtivo é gerenciado, o setor não só pode diminuir suas emissões atuais de GEE como pode sequestrar carbono no solo.
Nesse processo produtivo existem práticas que são mais sustentáveis/regenerativas que outras, e que ao longo do tempo promovem essa redução de emissões e sequestro. Você provavelmente já ouviu falar de plantio direto, rotação de culturas, culturas de cobertura, produtos biológicos, integração lavoura-pecuária. Esses são alguns exemplos.
Promissor, não? Muito, porém essas práticas não são adotadas de maneira generalizada. Por quê? Entra em cena um ator essencial: o produtor rural.
O produtor é o “empreendedor original”. Ele toma risco – de preço de insumos, de preço de commodities, climático, logístico, para citar alguns. Ele toma decisões regularmente que podem ser a diferença entre ter ou não margem positiva no final do ano. Além disso, são apaixonados pelo que fazem e a maioria não consegue se imaginar fazendo outra coisa. De certa forma, a relação do produtor com a terra simboliza a harmonia entre o desenvolvimento econômico e a conservação ambiental que falamos há pouco. Ele precisa extrair valor da terra para viver no presente e ao mesmo tempo conservá-la para poder viver dela no futuro e passá-la para a próxima geração. Ele é o guardião da terra.
Mais um ponto óbvio: se práticas sustentáveis não forem adotas no nível da fazenda, os benefícios não são capturados. Logo, é o produtor quem decide adotar ou não essas práticas…na prática. Essa decisão não é óbvia. Adotar essas práticas requer tempo, esforço e investimento. E se a execução não sair como o planejado – e lembre-se que a operação é a céu aberto e pragas e doenças não ligam para o seu planejamento – a produtividade da lavoura pode cair. Perda de produtividade = perda de margem na veia. E como grande parte da produção é financiada, isso pode significar ficar inadimplente frente a credores, dificultando novos financiamentos.
Para quem está no campo, fica claro que a não adoção massiva de práticas regenerativas não acontece por falta de conhecimento ou interesse dos produtores. A grande maioria sabe dos benefícios, mas eles se veem no dilema de tomar um risco econômico mensurável no curto prazo para capturar benefícios menos mensuráveis no médio prazo. O retorno vai estar lá? Eu, arrendatário, vou continuar tocando essa área? Meu negócio vai sobreviver até lá na frente para eu capturar esses benefícios?
Então a pergunta certa é: como incentivar produtores a adotarem práticas sustentáveis de maneira generalizada, reduzindo emissões de GEE e sequestrando carbono em solo?
Se o interesse em combater as mudanças climáticas não é só do produtor, mecanismos devem ser usados para compartilhar o risco de transição com outros atores interessados. Programas do governo como o ABC+ e linhas de financiamento de bancos especificas para agricultura sustentável/regenerativa são iniciativas importantes e necessárias, mas que sozinhas não resolvem o problema.
Empresas e consumidores finais também precisam ser catalizadores de mudança. A boa notícia é que eles estão entrando em campo cada vez mais. Como falamos, o número de empresas definindo e publicando seus objetivos de redução de GEE só aumenta. Isso também é verdade para empresas do agronegócio, especificamente. E mais, outros setores progressivamente veem a agricultura como uma alavanca para compensarem suas emissões.
Compensação de emissões? Como funciona isso? Entra em cena o tal do mercado de carbono.
De forma (muito) simplicista, o mercado de carbono é um mercado onde empresas (e países) que reduzem suas emissões a mais que o esperado/desejado podem vender essa diferença para outros que emitiram acima. Cada crédito de carbono representa uma tonelada de CO2eq.
Há diferentes ambientes de mercado de carbono. Via de regra, quando falamos de agricultura, estamos falando do mercado voluntário. Para mais informações sobre o funcionamento e dinâmica desses diferentes ambientes, sugiro leitura do Relatório “Oportunidades para o Brasil em Mercados de Carbono”.
Empresas podem incentivar essa adoção de práticas sustentáveis no campo e uma transição em direção a uma agricultura mais regenerativa de duas formas.
Primeiro, elas podem comprar um crédito de carbono gerado por projetos em agricultura. Desenvolvedores desses projetos garantem que as práticas regenerativas foram adotadas e seus impactos em redução de emissões e sequestro de carbono em solo foram quantificados. Esses impactos geram créditos, que são comercializados. O preço é definido pela oferta e demanda por aquele tipo de crédito. Compradores podem ser de qualquer setor e vão usar esses créditos para compensar (offset) parte de suas emissões. Do valor do crédito, uma menor parte vai para o desenvolvedor do projeto e a maior para o produtor. Esse é um incentivo adicional para a adoção das práticas.
E segundo, elas podem pagar um prêmio diretamente a produtores que produzem grãos (por exemplo) “de baixo carbono” ou “sustentáveis” – produzidos usando práticas regenerativas onde, de novo, o impacto foi quantificado. Compradores definem o valor desse prêmio – um adicional ao preço do grão “comum”. Compradores vão processar esses grãos, logo são empresas que participam da cadeia. Essas empresas podem usar as reduções de emissões quantificadas e abatê-las de seu inventário de emissões de escopo 3 (para entender o que entra em cada escopo. Aqui, o prêmio é o incentivo e não existe a emissão do crédito. Então tecnicamente não estamos falando do mercado de créditos de carbono ainda que o incentivo para a transição exista.
Essas práticas – culturas de cobertura, integração lavoura-pecuária, etc. – não são novas. Por que esses créditos e prêmios já não geram receita adicional para os produtores há muito tempo? Dois principais desafios:
Primeiro, quantificar os impactos benéficos dessas práticas não é trivial. Medir o aumento ou diminuição de moléculas no campo, a céu aberto, onde temos interação de clima, solo, planta, microrganismos, pragas, doenças, fertilizantes, defensivos e todos os tratos culturais é complexo. E mais, essa quantificação tem que ser precisa o bastante para atender os requisitos de protocolos reconhecidos e verificadoras, e (e esse é um grande “e”) precisa ser economicamente viável para o criador do programa querer fazê-lo. Esse é um balanço sensível e complexo de ser alcançado.
E segundo, conectar produtores com atores que tenham interesse em sustentabilidade de uma maneira confiável e rastreável também é desafiador. Nossa cadeia é fragmentada e tem inúmeros atores, o que deixa o link entre o que é colhido no campo e o produto final pouco claro. Esse link é essencial para que os incentivos fluam corretamente e é um desafio executá-lo na escala gigantesca e no dinamismo da produção e comercialização agrícola.
Antes de desanimarem, a boa notícia: novas tecnologias já resolvem esses problemas.
Para atacar o problema de quantificação, com um mix de modelos biogeoquímicos, machine learning e análise de ciclo de vida conseguimos quantificar com confiança (i.e. sabendo o grau de incerteza) esses impactos. Esses modelos são comparados com experimentos e amostragens de solo para garantir aderência, mas (e esse é o pulo do gato) não dependem deles extensivamente.
Para o problema de rastreabilidade, com imagens de satélite, otimização, machine learning e plataformas digitais, empresas conseguem ter visibilidade sobre áreas que produziram os grãos que convergem para os seus armazéns (ou armazéns de intermediários de quem eles compram). Elas podem, então, estimar sua pegada de maneira contínua e ágil, tomando melhores decisões de originação.
Apesar da alta sofisticação dessas tecnologias, elas não são uma promessa. Elas já são realidade hoje.
Um exemplo é o Carbon da Indigo Ag, nos EUA. A empresa desenvolve tecnologias para agricultura sustentável e um dos carros-chefes é esse programa de créditos de carbono em agricultura, verificados pelo Climate Action Reserve (CAR), umas das principais verificadoras internacionais. Desde a sua criação esse programa tem a maior emissão acumulada de créditos verificados em agricultura do mundo, tendo mitigado ou sequestrado, em 3 safras, ~300.000 tons de CO2eq e gerado ~$12M em receita adicional para produtores.
Colocando tudo junto: práticas sustentáveis reduzem emissões e capturam carbono no solo. Produtores adotam essas práticas incentivados pelos benefícios para o solo, pelo orgulho de contribuírem (mais) com o planeta, mas também pela receita adicional. Essa receita adicional vem de duas formas, pelo crédito ou prêmio pagos. Quem paga são atores da cadeia ou empresas de outros setores com uma agenda de sustentabilidade e que querem dividir o risco da transição. Agricultura sustentável é uma alavanca poderosíssima para atacarmos o aquecimento global. Isso já é realidade.
No Brasil, especificamente, essas tecnologias ainda estão dando os primeiros passos, mas a oportunidade é enorme. O produtor brasileiro, na média, já é mais sustentável que o de outras geografias. Plantio direto, por exemplo, é uma realidade. Uso de culturas de cobertura só cresce. Chegou a hora de dividir a conta de fazer essa transição no campo e de criar os incentivos para os guardiões da terra virarem também os guardiões da Terra.
Filipe Dutra Nunes – Diretor de Business Development Latam da Indigo Ag.
Fonte: Indigo Ag